Pé de guerra
Zezinho gostaria que os soldados de brinquedo tivessem vida. Lutassem. Gostaria , sim. Até que um dia, no quintal, depois de cavar pequenas trincheiras, conforme vira no cinema do bairro, arrumou-os em posição de combate. Os canhões ficaram atrás.
A imaginação trabalhou, violenta. As tropas inimigas, frente ao seu pequeno exército, foram vencidas de forma violenta em pouco tempo. Mas a sua vitória lhe trouxe imensa tristeza. Como consertar os inimigos quebrados? Zezinho sentiu que podia destruir: mas estava muito triste. Nem sequer comeu, naquele dia, o jantar que sua mãe preparara.
-Só um pouquinho.
– Não quero.
– Por que, menino?
– Mãe…eu matei gente, hoje. Uma porção de soldados.
– Quê?
– Soldados sem perna. Sem cabeça. Sem braço. Foi horrível. Tenho vontade de chorar.
– Que bobagem é essa?
– Mãe…Você compra aquela ambulância na venda do Onofre? A que tem a cruz vermelha?
– Para quê?
– Para tratar deles. Vou fazer muletas de pau-de-fósforos.
Zezinho teve febre. Chamaram o doutor. Ninguém entendia. Mas a guerra continuava na febre do menino.
– Avançar! Primeiro canhão, fogo! Continuava a loucura bélica.(…) O médico falou:
– Não entendo. Ele comeu alguma coisa na rua?
– Não doutor. Brincou o dia todo no quintal. Foi examinado dos pés a cabeça. Nada.
– Vou receitar calmante. Ele está muito agitado. Não entendo, mesmo.
No dia seguinte, Zezinho resolveu enterrar seus mortos. Generais e soldados. Lado a lado. Maneco pulou a cerca e perguntou o que era aquilo.
– Nada.
– E esse negócio aí, com a bandeirinha?
– Nada, vá embora! Já disse.
Maneco foi. Ele arrumou alguns sobreviventes inimigos. Estava com raiva. Sem tristeza. Arrumou seu exército. Poucos existiam do outro lado. Mas eram inimigos.
( …) A devastação foi geral. Conferiu: nada mais restava. Olha, depois, suas tropas. Perdera a noção das coisas: destruiu seu próprio exército. Nada mais restava dos brinquedos. Marchou sozinho pelo quadrado de terra, limitado pelas cercas de bambus. Com a corneta, presente do tio Anselmo, tentou atirar alguns sons. Corneta rouca de plástico. Apanhou pedras e foi atirando. Quebrou vidraças. Só então, lembrou-se que os pais brigavam dia e noite. Discutiam. Certa vez, o pai bateu na mãe. Tentou socorrê-la, mas foi atirado contra a parede esburacada. Sangrou.
Brigavam muito. Principalmente quando o pai chegava bêbado.
Os soldadinhos eram comprados com as economias da mãe: costurava para fora.
Chegou em casa e apanhou a caixa de sapatos, vazia. Desenterrou os sepultados mutilados. No tanque, lavou-os com amor: pernas, braços, cabeças.
Ressuscitava-os na sua imaginação. Arrumou-os na caixa e jogou fora os armamentos. Lamentava aquela guerra inútil, tentando consertar os estragos. Naquele instante, sentiu-se feliz: havia paz.
(Pé de guerra. QUINTANILHA, Dirceu.)
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